Christian Cravo: a margem do real
Ligia Canongia
A obra de Christian Cravo se afirma no cenário artístico brasileiro na década de 1990, período em que ganha contornos públicos relevantes e se inscreve em definitivo no âmbito profissional. Coincidentemente, é a época em que a fotografia abandona o recurso aos simulacros e ao caráter espetacular que a marcaram na década precedente, e o retorno ao real é restaurado. Imagens do cotidiano e o interesse por objetos e cenas da vida comum passam a acentuar o que se chamou de "movimento de dessublimação da arte", levando os artistas-fotógrafos a se debruçarem sobre a cidade, a paisagem, a relação do homem com seu meio, assim como a abordarem questões sociais, políticas e etnográficas.
O aspecto ideológico, que então assume primeiro plano, fica evidenciado na observação da vida urbana, na enunciação dos problemas de territorialidade e na crítica aos sistemas sociais, sem que tal engajamento implique, necessariamente, uma visão neutra e distanciada da realidade. Valores humanistas e intervenções subjetivas se infiltram na suposta inerência objetiva da fotografia documental, fazendo seu caráter imparcial deslizar para territórios emocionados. E é aqui que a iconografia de Christian Cravo adquire pujança.
Nas fotografias do sertão brasileiro, que se desenrolam nas séries intituladas Irredentos e Nos jardins do Éden; nos retratos da população do Haiti, que se desdobram no conjunto nomeado Testemunhos do silêncio; ou ainda nas visadas do êxtase religioso na cidade de Salvador da Bahia, Christian Cravo interpõe a singularidade de seu olhar na tomada das imagens, fazendo o estatuto histórico ou sociológico do documento se curvar ao simbólico.
Diferente, portanto, da neutralidade do documento, do registro imparcial que se distancia do objeto fotografado, as imagens de Christian Cravo, nessas séries, são apaixonadas, dramáticas e comoventes, sem perder, paradoxalmente, o teor documental que sempre as acompanhou. É no fio dessa navalha que suas fotos se sustentam, na ambivalência entre a objetividade e a expressão, ou entre o rigor formal e a exaltação lírica. Existiria, assim, na recuperação da fotografia como documento, uma ambiguidade fundamental: o retorno ao referencial jamais suprimindo o registro particular do sujeito. Por baixo da superfície aparente do real material, que, em princípio, contraria todo idealismo, haveria sempre uma ligação subterrânea com os códigos subjetivos e poéticos. Afinal, relembrando Walter Benjamin, a câmera continua falando direto ao olho humano, pois a fotografia e "somente ela nos revela o inconsciente da visão, como a psicanálise, o inconsciente das pulsões".
Em Christian Cravo, o documento não é jamais um dispositivo meramente formal, mas, antes, um meio de investigar as condições de representação do real, instituindo-se como experiência do espaço e do tempo, e como forma de registrar a vitalidade animista do referente. O foco, que muitas vezes foi centrado na espiritualidade e na fé da sociedade brasileira e haitiana, corrobora sua vontade de transcender a objetividade do documento fotográfico, surgindo como resposta à solidão e ao desencantamento do mundo. O fato dele ter saído do nordeste do Brasil para o Haiti denota sua preocupação em registrar populações que partilham os mesmos traumas sociais e concepções religiosas semelhantes, com cenas e tipos humanos reveladores de uma mesma comoção. Como observado na letra de Caetano Veloso para uma música de Gilberto Gil, "o Haiti é aqui".
A recuperação de ações do cotidiano, da urbanidade e da cultura dos povos tem sido notável na fotografia contemporânea, demarcando o desejo de situar os corpos e os objetos como inscrições ideológicas, mas um desejo não necessariamente engajado com códigos de denúncia, ideais políticos ou compromissos com o realismo. O retorno e a renovação do gênero documental, ao contrário, surgiram nos anos 1990 como uma estratégia para requalificar o real no âmbito fotográfico, para enunciar questões das sociedades modernas e combater as simulações e o ilusionismo.
Não se pode, absolutamente, afirmar que a obra de Christian Cravo esteja ligada a uma iconografia política, embora se concentre em certas minorias sociais. Como o próprio artista declarou, sua atenção esteve voltada prioritariamente para a representação da transcendência e da espiritualidade, aspectos difusos e diáfanos que colidem com o pragmatismo das enquetes puramente documentais. Há ainda o fato de suas fotos se configurarem como formulações estéticas, interessadas em atravessar o caráter mundano e mercantil que a fotografia assumiu no mundo de hoje, tornando-se presença recorrente e exaustiva nos canais de divulgação de massa, no perfil corriqueiro das cidades, no comércio e em todas as esferas do viver moderno. Teóricos recentes tendem mesmo a considerar a cultura midiática da atualidade, em que a fotografia tem papel fundamental, como um poder comparável a um novo absolutismo, ao qual a esfera pública estaria inteiramente submissa.
Paul Virilio, por exemplo, declara que o sujeito contemporâneo, diante do quadro geral de torpor causado pelos meios públicos de massa, ingressou numa "imensa conspiração do silêncio", perdeu sua razão crítica e sua capacidade de reflexão, não se deixando mais "tocar" pelas coisas. Essa perda de empatia com o mundo real e seus fenômenos teria gerado, segundo o autor, "o desastre das representações".
Contrariamente, no entanto, o resgate da noção de punctum enunciado por Barthes seria justo uma contrapartida a esse pensamento, quando propõe a retomada, na linguagem fotográfica, dessa empatia perdida. Roland Barthes sugere, então, que nos deixemos novamente "tocar" pelas imagens, pelo que dela nos punge, discurso ao qual Cravo responde afirmativa e prontamente com seus pontos de vista admiráveis.
O papel do artista ao trabalhar sobre o suporte fotográfico não é, portanto, apenas o de se aventurar por um meio experimental e historicamente novo, mas o de constituir uma linguagem capaz de enfrentar a concorrência desse caráter publicitário, mercantil e descritivo, enfim, o de recuperar, na fotografia, o seu potencial poético. Em consequência, o trabalho do artista-fotógrafo seria, por princípio, uma ação contra os regimes instrumentais da imagem, quer como informação pura, quer como mercadoria.
Essa tarefa se torna, porém, especialmente difícil, devido à natureza reprodutível da técnica e sua correlação direta com o real, o que, desde sua gênese, entrelaça a fotografia aos códigos da mimese, desafiando a criação de campos puramente simbólicos. O debate sobre o teor artístico ou não da fotografia se tornou praticamente obsoleto na pós-modernidade, quando ela deixa de ser considerada mera representação do mundo. Trata-se, porém, de um debate que permanece vivo e recorrente e que findou por se firmar como parte de seu próprio discurso e sua história. Todo artista-fotógrafo sofre, então, o embate dessa ambiguidade, da foto ser ou não prisioneira do real, de estar ou não aberta ao desconhecido, de significar além do que sua superfície expõe ao visível.
O enfrentamento da poeticidade na fotografia, sobretudo quando ela recupera o viés documentário de sua origem, aparece como uma questão primordial na série mais recente de Christian Cravo, realizada na África: Luz e sombra. Nesse novo conjunto de fotografias, realizadas em 2015, a figura humana está ausente e, com isso, os aspectos etnográficos, dramáticos e performáticos das cenas anteriores são substituídos por uma morfologia mais seca e econômica, que dispensa os postulados humanistas e focaliza, enfaticamente, a questão da própria construção da imagem, com seus problemas intrínsecos de luz, tempo e espaço.
A questão da espacialidade na obra de Christian Cravo, principalmente nas fotos africanas, pontua e exalta um código específico da fotografia que é o gesto do corte, desse cut que subtrai da continuidade espacial do real uma fatia, um fragmento de um todo apenas imaginado. Diferente da pintura, que compõe vagarosamente o espaço pictural, que acrescenta matérias sobre a superfície, a questão do espaço fotográfico não é colocar dentro, mas, ao contrário, arrancar de vez uma porção do mundo. E Christian Cravo dá forte ênfase ao cut nessa série, ao fazer a tomada de campos visuais bastante restritos, que muitas vezes seccionam apenas parte do corpo de animais ou de paisagens, enquadrando essa parte como a totalidade da imagem. Na ação do corte, que institui um espaço sempre e necessariamente parcial, resta ao espectador buscar mentalmente a complementariedade desse espaço, sua continuidade, sua completude. Espaço fora de campo, também conhecido como espaço off, essa fatia excluída do visível é essencial para a experiência do próprio campo retido na foto. Segundo Philippe Dubois, "o que a fotografia não mostra é tão importante quanto o que ela revela", pois existe uma relação inevitável do fora com o dentro, uma relação constante entre a presença virtual do que não está ali com o que está de fato inscrito no quadro fotográfico. E Dubois acrescenta:
"Sabe-se que esse ausente está presente, mas fora-de-campo; sabe-se que esteve ali no momento da tomada, mas ao lado. A lógica do índice trabalha, portanto, também a relação do campo com o fora-de-quadro. É ele que faz com que diante de qualquer foto experimentemos esse sentimento de um além da imagem perfeitamente existencial".
Os cortes de Christian Cravo na série africana são radicais. Certamente interessou- lhe reduzir os campos visuais a seções tão parciais do referente que nossa visão por vezes sequer reconhece esse referente. Algumas paisagens fotografadas, por exemplo, inscrevem-se como áreas lisas em preto e branco, como se fossem planos informes que aspirassem a uma abstração absoluta. O cut é tão incisivo e redutor que chegamos a não identificar o conteúdo da imagem como uma paisagem e, dessa forma, a imaginação do espaço fora-de-campo torna-se turva e difícil para o espectador. No fundo, Christian Cravo, com a construção dessa espacialidade fotográfica complexa, que engendra relações ambíguas entre o campo e o fora de campo e que evita toda e qualquer narratividade, busca desafiar os limites da realidade documental da fotografia para que a técnica possa se curvar ao simbólico e ao ficcional.
Importante tocar na questão da narratividade em Cravo, pois, nessa série especialmente, e diferente de outras, como a do Haiti e a do sertão brasileiro, ele opera com uma ordem figural enxuta, suprime a atmosfera cênica e narrativa dos personagens anteriores e assume campos de uma redução quase minimalista, incomum em sua trajetória. A ausência da figura humana nessas fotografias e, consequentemente, a retirada de certa iconografia teatral que lhes rondava, respondem pela busca de uma "verdade" outra das imagens, que não mais se confunde com a questão do conteúdo e do significado, não mais se apoia no reconhecimento da identidade figural, bastando-se como formas. Com isso, o artista desloca a atenção do espectador para a constituição mesma da imagem, entendida como fato exclusivamente estético.
Questões pessoais levaram o artista a suprimir a figuração humana das fotos recentes: o falecimento do pai e as numerosas mortes decorrentes de um terremoto no Haiti, que também originou uma sequência fotográfica realizada naquele país. Testemunhos do silêncio, essa série revela a devastação, a ruína e os escombros de uma sociedade destruída, em que o homem só aparece de costas ou em segundo plano. As fotografias do terremoto, portanto, já anunciavam a estratégia do enxugamento emocional das imagens africanas, mesmo que retratando uma catástrofe. Nelas, o que vemos são objetos, resíduos de construções, restos de coisas que se alçam ao patamar protagonista do quadro fotográfico, e que constituem tão somente índices do sentimento da perda e do desastre. As fotos africanas, igualmente, funcionam de maneira excepcional como índices, como traços de corpos e paisagens que não chegam a se enunciar integralmente, mas que, apesar de sua parcialidade visível, se oferecem a nosso olhar com a grandeza de monumentos.
Agora, o congelamento dos instantâneos fotográficos, que retira da ordem temporal da natureza a sua duração, parece emudecer de vez qualquer possibilidade narrativa, qualquer enunciação de sintaxe no tempo, aumentando, por outro lado e paradoxalmente, o seu teor fantasmático. A secura retórica das fotografias africanas, a sua artificialidade e seu isolamento espaço-temporal nada fazem, na verdade, senão colocar a identidade do referente à deriva, inconclusa e cercada de estranheza.
Concebidas como puras formas de "luz e sombra", as fotografias da África surgem como fantasias luminescentes, que parecem desmaterializar a natureza, desestabilizar a percepção e cativar nossa imaginação para um mundo fronteiriço ao real. O uso do preto e branco nessa obra, como de resto na maioria do trabalho de Christian Cravo, corrobora o estatuto desencarnado da fotografia, que não é mais do que um traço de seu sujeito ou objeto de referência, sinaliza a "irrealidade" da imagem, posta em contradição com o cromatismo empírico, perturbando, assim, a ordem pragmática das coisas do mundo.
Paisagens e corpos capturados na desmedida da ficção, sobreviventes virtuais de um real inacessível, as fotografias de Christian Cravo da série africana são pedaços indistintos de um universo desfigurado e absurdo, que não se reconhecem na objetividade do senso comum, habitando espaços e tempos que só existem no nível da linguagem e na excentricidade de seu olhar.